Transbordo

11:12

Resolvi abrir espaço para colaboradores, depois que recebi do professor/poeta Alexandre Furtado um artigo sobre os dias chuvosos e alagadiços que o Recife enfrenta, vez por outra. Alexandre lançou em 2010 seu primeiro livro, de ruas e inti-nerários, pela Cepe Editora, onde também levanta contrapontos entre o Recife de hoje e o de sua infância e adolescência.
Eis o artigo:

Que nada, meu amigo!
Céu de brigadeiro? Que nada! Anos atrás, o inverso deste inverno. Em junho e julho tudo costumava ser cinzento, quando não mesmo escuro. Na verdade, as primeiras ausências dos dias ensolarados começavam já no final de maio. Aquilo sim era inverno, mas uma diferença: até onde sei, não havia muitos desastres, alagamentos monumentais, perdas de carros, desabamentos e quedas. Outro Brasil nos setenta. Talvez as coisas ficassem no lugar, a natureza mais ou menos intocada protegendo a cidade que, por sua vez, não era tão verticalizada, barulhenta, engarrafada e violenta. De todo, naqueles dias, dava até ter medo sair de casa, as condições pluviométricas densas nos deixavam imaginar que todo o céu cairia em nossas cabeças, eram outras as lendas urbanas. A escola? Distante demais pra mim! E por que? Pois, ficava no centro, hoje me divirto com as noções de lugar, é que criança acha tudo distante e demorado, mas o caminho era molhado, claro, aliás a umidade pesava o ar, e o pior, não tínhamos chuveiro elétrico, era luxo, o banho ficava na base da tora e da coragem mesmo.


Assim, Recife debaixo de uma chuvinha demorada me fez pensar na vida, enquanto tentava fechar as janelas da casa de repente, digo do apartamento, para não molhar o interno. Pensei na casa em que morávamos, quintal com pitangas e goiabas, e no longe, no pé do muro lodoso, uma mangueira grandalhona, e no cumprido, os jasmineiros, que vieram junto às tardes em que ficávamos no terraço encolhidos com o barulho das calhas. A vida e suas voltas espiralares, condicionando as noções do hoje, e tudo passado? Que nada, meu amigo! O que achamos ser ontem enrosca-se pelas pernas, pela cabeça e pelo coração que ainda é de um vivo vermelho. Enquanto houver jeito, a gente vai se inventando, sobrevivendo às perdas, pois não era Sêneca que dizia que aprender a viver é aprender a morrer?
Pois, vamos então, sem desistir, aprendendo e convivendo com o vivido, desmascarando a falsa ideia de que o existido vale tão somente o quanto pesa, e o peso das coisas mede-se pelo momento. Mas aí, eu indago, vestido de que o momento iria ao samba? A depender do convite, o momento comparece com a roupa que tem, não é bem a roupa, mas o convite que importa, espero agora não desaprovar nosso querido Noel, mas minha conduta, querendo mesmo me aprumar, enaltece a conversa, sem menosprezo ao instante, o que não deixa de ser uma verdade, mas que não é a única, nem a última. Embora importante o minuto, o passado existe, não porque a gente insiste, muito menos por ser melhor. O Gil em alcance nos alenta, o melhor lugar do mundo é aqui e agora, onde o indefinido agora que é quase quando, mas esse melhor, pelo tudo, trava com o mundo a essência do que somos e o que somos vem como soma, somos soma, sem nada sumir, nem exceder, somos soma do agora e o ainda agora e do antes e tudo isso junto é que faz a diferença humana entre outros bichos, por isso é que temos que nos centrar, escolher um ponto qualquer, e um de boa cepa é aquele que nos mostra ideal no agora, é esse instante, sem se esquecer de quantas somas e subtrações são parte da mesma equação.
Fechando a janela, abria portas, mundos, àquela percepção de que tanto falava Blake, mais tarde Huxley e os Doors, entre os pingos levados com os ventos, entre–lugares, entre e entre, eu pedia para entrar sem bater, digo eu ao que chamo de passado, como convite sem cerimônias ao que se chama de presente, e como é interessante o diálogo de ambos, como é curioso ver o bairro em que moro hoje, de longe, quando antes as copas das árvores.
Os invernos nos molham, sem chorumelas, e trazem uma saudade que é saúde. É que os invernos de agora são outros, apenas isso, talvez mais leves, nada daquelas imagens de chuva forte, torrencial, de meses a durar, a impressão de criança, que pressentia que toda e qualquer chuva é sinal de vida, por outro lado, o que tenho em mente não foge, e comigo mesmo é que corro, sem sustos, e não me venha achando que vivo nu ou no passado, que nada, o presente me encanta, mesmo com chuvas ácidas, mesmo com céus ensolarados em julho, que nada meu amigo! Tudo com direito, como Arnaldo Antunes em seu poema A chuva, nesses últimos dias, em pleno verão antecedendo folias carnais, o Carnaval, a chuva mesmo murmurou o meu nome.
Alexandre Furtado

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