Ode aos gatos.

02:23

Sempre que chego em casa sou recebida com uns miaus esfomeados (eu sou a que serve a comida e água), que depois se transformam em miaus de DR (eles ficam muito tempo sozinhos e se sentem abandonados, querem atenção); depois de ganhar uns afagos, os miaus são de chamado pra brincar (os de Tininha, a minha Tina Turner de pelos longos e olhos verdes, uma lady, refinada e tranquila) e de "quero colo" (os de Sivuca, o branquinho de olhos azuis, um  eterno menino dengoso pois foi castrado muito cedo...nunca fez sexo, coitadinho...).

Quem diz que gatos não são carinhosos nunca conviveu com felinos. Eles sentem falta de companhia, ficam deprê se forem deixados muito tempo sozinhos, mas dormem tranquilos e seguros quando a  gente está perto. E quando ganham carinho, ronronam de felicidade. São bonitos, macios, limpos, elegantes, encantadores. E adoram livros. Aliás, qualquer coisa que você estiver lendo, o que ele vai demonstrar sentando nas páginas, cochilando sobre a capa, tentando virar as folhas com as unhas afiadas...

Na literatura, é constante a presença dos gatos.Veja aqui alguns exemplos: 




Posso lembrar do espertíssimo gato de botas (Charles Perrault); da
"canalha gatesca, nigromântica e campainhadora", no Dom Quixote de La Mancha (Cervantes); da Ode ao gato (Pablo Neruda); do pequeno gato preto  (Colette); de  Os gatos (T.S. Eliot); O gato preto (Edgar Allan Poe), que denuncia o criminoso; o gato de Alice (Lewis Carrol); de O gato Malhado e a andorinha Sinhá (Jorge Amado); de O gato por dentro (William S. Burroughs); de  História de uma gaivota e o gato que a ensinou a voar (Luís Sepúlveda); do gato de Os Saltimbancos (Chico Buarque); da mulher-gato (Bill Finger e Bob Kane); do Gato Félix (Otto Mesmmer e/ou Pat Sullivan); de Tom e Jerry; sem falar em personagens que demonstraram amor pelos gatos, como Winston Churchill, Ernest Hemingway, Mary Wilkins; Leon Tolstoi, Victor Hugo, Balzac, Mark Twain,entre outros.

Sobre o amor aos gatos e a eterna disputa com os cachorros, a escritora Lygia Fagundes Telles escreveu um artigo maravilhoso, que reproduzo aqui:


Os Gatos
“Ele fixaria em Deus aquele olhar de esmeralda diluída, uma leve poeira de ouro no fundo. E não obedeceria porque gato não obedece. Às vezes,quando a ordem coincide com sua vontade, ele atende mas sem a instintiva humildade do cachorro, o gato não é humilde, traz viva a memória da liberdade sem coleira. Despreza o poder porque despreza a servidão. Nem servo de Deus. Nem servo do Diabo.
Mas espera, já estou me precipitando, eu pensava naquela fábula da infância: é que Deus Nosso Senhor pediu água ao cachorro, que lavou lindamente o copo e com sorrisos e mesuras foi levá-lo ao Senhor. Pedido igual foi feito ao gato e o que fez o gato? O fingido escolheu um copo todo rachado, fez pipi dentro e dando gargalhadas entregou o copo nojento na mão divina.
Acreditei na fábula, na infância a gente só acredita. Mais tarde, conhecendo melhor o gato, descobri que ele jamais teria esse comportamento, questão de feitio. De caráter. Ele ouviria a ordem e continuaria deitado na almofada, olhando. Quando se cansasse de olhar, recolheria as patas como o chinês antigo recolhia as mãos nas mangas do quimono. E mergulharia no sono sem sonhos, gato sonha menos do que cachorro que até dormindo se parece com o homem. Outro ponto discutível: dando gargalhadas? Mas gato não dá gargalhada, só cachorro. Meus cachorros riam demais abanando o rabo, que é o jeito natural que eles têm de manifestar alegria, chegavam mesmo a rolar de rir, a boca arreganhada até o último dente. O gato apenas sorri no ligeiro movimento de baixar as orelhas e apertar um pouco os olhos, como se os ferisse a luz. Esse é o sorriso do gato – ô bicho sutil! indecifrável. Inatingível.
Nem pior nem melhor do que o cachorro, mas diferente. Fingido? Não, ele nem se dá ao trabalho de fingir. Preguiçoso, isso sim. Caviloso. Essa palavra saiu da moda mas deveria ser reconduzida, não existe melhor definição para a alma do felino. E de certas pessoas que falam pouco e olham. Olham. Cavilosidade sugere esconderijo, cave – aquele recôncavo onde o vinho envelhece.
Na cave o gato se esconde, ele sabe do perigo. Mas o cachorro se expõe, inocente.
Foi na minha juventude que conheci o gato bem de perto. Me preparava para os vestibulares da Academia do Largo de São Francisco, era noite. E eu lia Iracema sem vontade, lia em voz alta, aos brados, para espantar o sono. Então ouvi um ruído brusco de coisa algodoada entrando pela janela e parando atrás da minha cadeira. Senti o olhar da coisa se fixando em mim. Fui me voltando devagar, afetando aquela calma que estava longe de sentir: um gato malhado, espetado nas quatro patas, me encarava, perplexo. Eu também perplexa. Fomos nos recuperando do susto, eu menos tensa do que ele. Meu apartamento era no primeiro andar de um prédio cercado de casario e essa janela da sala dava para o telhado de uma casa velhíssima, por onde transitavam os gatos do bairro.
Por onde andam hoje os gatos que não encontro mais nenhum. Naquele tempo havia gato à beça nos muros, nos telhados. “É que a vida apertou e gato dá um bom cozido”, explicou o jornaleiro. A fome aumentou e o telhado diminuiu, onde agora os telhados nos quais eles ficavam tomando sol? Caçando passarinho. Amando. Os ratos todos em plena circulação, fortalecidos. E os gatos, onde estão os gatos? Pois aquele era um gato de telhado, as manchas amarelas e pretas num fundo branco. E os olhos. Por alguma razão obscura, escolheu minha casa: estendi a mão afeita a acariciar cabeça de cachorro. Mas cabeça de gato não é cabeça de cachorro – primeira lição que ele deu ao recuar com uma soberba que me confundiu. A conquista do gato é difícil, embrulhada, não tem isso de amor repentino: mais um movimento de aproximação e ele fugiria ventando.
Fui buscar o pires de leite, deixei-o ao alcance do visitante da noite e continuei a ler o romance da virgem dos lábios de mel, mas em voz baixa, intuí que ele preferia o silêncio. Ele ou ela? Sexo de gato não é nítido como sexo de cachorro, outra diferença importante. Leva algum tempo para a descoberta do sexo, da unha e da idade.
Gato ou gata, vai se chamar Iracema, resolvi. E deixei meu hóspede, a casa é sua.
Então ouvi o ruído delicado, ele bebia leite, mas não como os cachorros bebem, sofregamente, espirrando em redor. O gato é discreto. Há que amá-lo discretamente, pensei e fiquei sorrindo. Tenho um gato.
“Tudo passa sobre a terra!” – estava escrito no final do romance que achei triste. Olhei para a outra Iracema que dormia no meio do tapete. Também você vai passar? Tu quoque, Iracema?! Não sabia ainda que permaneceria infinita na minha finitude
.”
(Lygia Fagundes Telles – texto extraído do livro A Disciplina do Amor)

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